2025 marca a primeira década do surto da síndrome congênita associada à infecção pelo zika vírus no Brasil. Pernambuco foi o primeiro estado do país a notificar o aumento da doença e acender o alerta para os problemas que acompanham a síndrome. Além da redução do perímetro cefálico, dificuldades de visão, de audição e no quadril, outra questão representa uma luta diária para crianças e cuidadores: a alta incidência de doenças bucais.
Desde o início do surto, a doutora Ana Carolina Leitão, membro da Câmara Técnica de Odontopediatria do Conselho Regional de Odontologia de Pernambuco, CRO-PE, vem buscando dar mais qualidade de vida a estas crianças. Segundo ela, o atendimento a esse público precisa ser feito desde muito cedo.
“São crianças que precisam, desde os primeiros momentos, desse olhar da odontopediatria, para que a gente possa realmente vislumbrar esse atendimento desde uma fase que a gente chama de pré-patogênica, ou seja, antes mesmo da doença acontecer, orientar as mães com relação à higiene da boca, do desenvolvimento maxilio-mandibular. Essa abordagem da odontologia é essencial, inclusive, para que a gente não traga danos ao próprio equilíbrio da saúde como um todo”, relata.
A professora universitária e servidora pública no Sistema Único de Saúde como odontopediatria há quase 30 anos, Ana Carolina Leitão, pegou na mão de mães e de bebês, quando as informações sobre o surto eram poucas e as mães não tinham a quem recorrer.
“Pelo SUS, a gente não encontra atendimento odontológico para esses meninos porque tem que ser uma equipe especializada. Muitos deles não conseguem abrir a boca! Daniel, por exemplo, só consegue fazer qualquer tipo de procedimento com sedação. Então a gente conheceu a doutora Carol, e ela começou a atender esses meninos. Ela viu a necessidade dessas crianças. Então, se não fosse ela, hoje, a questão bucal dos meninos estaria perdida”, afirma a dona de casa Jaqueline Vieira, de 34 anos, mãe do pequeno Daniel Vieira, de 9 anos, paciente da dra. Ana Carolina Leitão.
Fatores como o uso contínuo de remédios e a dificuldade de higienização de forma independente, sem o auxílio de terceiros, também tornam o caminho dos pequenos mais íngreme. Um cenário que, aliado à facilidade de broncoaspirar entre esse público, exige uma atenção ainda maior.
“Cem por cento dos pacientes com microcefalia são disfágicos. O que é isso? Eles têm dificuldade de deglutição, ou seja, uma facilidade maior de engasgar. E a gente, que manipula muito a cavidade oral, às vezes, coloca água na boca desses pacientes, tem que ter muito cuidado com o posicionamento para que eles não broncoaspirem”, explica a professora, cirurgiã dentista e presidente da Câmara Técnica de Odontologia para Pacientes com Necessidades Especiais do Conselho Regional de Odontologia de Pernambuco, Juliana Andrade.
OS PRIMEIROS INDÍCIOS
Diferente do que se imagina, as dificuldades foram percebidas já nos primeiros dias de vida das crianças. De acordo com a jornalista Cinthyia Leite, mestre em saúde da comunicação humana e pioneira em noticiar os casos de microcefalia no mundo, o tema demorou a ser pautado, mas os indícios sempre estiveram lá.
“Já na amamentação, nos primeiros dias de vida, os pesquisadores e os médicos já falavam isso: ‘Elas não sugam como esperado, não mamam de forma como deveria para um bebê recém-nascido’. Até na Universidade de Pernambuco, no Hospital Oswaldo Cruz, foram feitos estudos na área de odontologia para investigar essa associação de ter a síndrome congênita do Zika vírus e ter problemas de saúde bucal”.
Levantamentos realizados ainda em 2015, data do surto, já davam conta do impacto da doença na saúde bucal. Na época, os pesquisadores da Faculdade de Odontologia de Pernambuco acompanharam 13 pacientes diagnosticados e atendidos no Hospital Universitário Oswaldo Cruz, localizado na cidade do Recife.
Uma das primeiras dúvidas dos especialistas era se as crianças viriam a ter dentes, como detalha a professora de odontopediatria da Universidade e vice-presidente da Academia Pernambucana de Ciências, Aronita Rosenblatt: “O motivo dessa nossa inquietação é que nós sabemos que a Zyka tinha uma predileção para o tecido nervoso central. Os dentes também se originam do mesmo tecido. Então, se essas crianças tiveram problemas no cérebro, provavelmente teriam problemas nos dentes. Então, foi uma surpresa muito grande, aos três meses de idade, a gente saber que as crianças iam ter dentes”.
O resultado veio por meio de radiografias odontológicas. A pesquisa levantou a hipótese de que os dentes poderiam apresentar defeitos na estrutura. Uma suspeita já confirmada, como explica a professora. “Essas crianças, quando analisadas ao longo do tempo, quando tiveram os dentes erupcionados, apresentaram defeitos de esmalte. O esmalte apresenta algumas estruturas comprometidas, o dente é mais áspero e, por isso, mais propício ao desenvolvimento de cárie”.
Ainda de acordo com a professora Aronita, o alcance das primeiras descobertas só não foi maior, porque os países desenvolvidos não estavam interessados no tema. “Eles (os países de primeiro mundo) já resolveram problemas sanitários que nós não resolvemos ainda. Então, o mundo odontológico não se preocupou com isso, e o impacto na odontologia foi muito pequeno – muito diferente do impacto na medicina”.
A professora de odontopediatria da Unibra e Uninassau, Ana Carolina Leitão, reforça o argumento. Segundo ela, a saúde bucal durante muito tempo foi escanteada do ponto de vista da integralidade do paciente. Porém, cada vez mais, fica evidente a importância de cuidar da saúde da boca.
“Se nós, como odontopediatras, nós não orientarmos para essa necessidade do cuidado também da boca, então esses pacientes vão poder aumentar o risco de lesões na boca, inflamações gengivais, sangramentos. Então, a gente, nos nossos mutirões de atendimento, orienta essas mães a fazerem abridores de boca para como cuidar da boca dos seus filhos. Se nós não debelarmos esses problemas menores, vão ser crianças com vários procedimentos cirúrgicos para serem feitos na boca”, afirma a dentista.
Um estudo inédito divulgado em 2022 pelo New England Journal Of Medicine, jornal com maior impacto na comunidade científica em geral, já constatou que as doenças infecciosas estão entre as principais causas de óbito de crianças com microcefalia. Por isso, a luta para garantir uma maior qualidade de vida para os pacientes com a doença passa também pelo atendimento odontológico.
ATENDIMENTO
À frente da União das Mães de Anjo (UMA), Germana Soares, mãe do pequeno Guilherme Soares, de 8 anos, decidiu ainda em 2015 iniciar o projeto para juntar as mães em busca de melhorias para o desenvolvimento das crianças com microcefalia. Atualmente, a instituição apoia 431 famílias em todo o estado, mas, desde o início, já encontrou muitas dificuldades. Entre elas, o baixo número de profissionais na área.
“Aos poucos, a gente foi entendendo que era necessário cuidar da saúde bucal dessas crianças, e a gente viu que não tinham muitos profissionais que trabalhavam à nível infantil e com especialidades para crianças com deficiências. Então, há poucos profissionais para uma demanda gigantesca”.
Na tentativa de suprir essa demanda, a odontopediatra Ana Carolina Leitão realiza mutirões a cada seis meses em universidades particulares e atende crianças que, muitas vezes, já nem se alimentam mais pela boca. Segundo ela, esse tipo de situação reforça a importância de procurar um dentista periodicamente e é uma oportunidade de orientar os cuidadores.
“Como profissionais de saúde, também orientamos, inclusive, sobre dieta digital. Às vezes, as telas também chegam às crianças como uma forma de relaxamento, e a gente explica que isso pode ser um estímulo negativo para o sistema nervoso central e um fator gerador de bruxismo. Então, os cuidados bucais, sim, fazem toda a diferença na qualidade de vida dessas crianças”, afirma.
Para quem tem plano de saúde, a realidade, às vezes, pode ser menos difícil de encarar. A técnica de enfermagem Ana Luíza da Silva, de 28 anos, é mãe de Benício José Mendes, de 6 anos, diagnosticado com microcefalia. A criança recebe atendimento integral em casa por meio de home care, o que facilita a rotina da família que mora no Recife. Para a mãe, procurar um dentista fez toda a diferença na vida do pequeno.
“Eu já vinha observando algumas cáries nos dentinhos dele. Por isso, a pediatra que acompanha Benício no home care decidiu solicitar uma avaliação com o dentista. No começo, eu fiquei um pouco apreensiva. Pelo fato dele ser uma criança traqueostomizada e epiléptica, eu não sabia como ele ia reagir, mas ele ficou super tranquilo mesmo. Super melhorou a qualidade de vida dele!”.
Mesmo assim, o desafio para encontrar atendimento pode afetar esse público.
“Uma criança de Buíque, com plano de saúde, rodou o Sertão inteiro atrás de um profissional que conseguisse abrir o céu da boca da criança porque ela não conseguia deglutir, não conseguia balbuciar nenhum tipo de palavra… Por não achar profissional, reportei a criança à doutora Carol, que imediatamente marcou uma data para cirurgia, e a criança já está em respiração”, diz Germana Soares, sobre o caso de uma criança apoiada pela UMA.
Hoje, segundo o governo do estado, Pernambuco totaliza 395 crianças com microcefalia decorrente da síndrome do zika vírus. De acordo com a Secretaria Estadual de Saúde, elas recebem assistência odontológica na atenção primária e também nos centros especializados em odontologia dos municípios.
De toda forma, no estado, o atendimento é fornecido no Hospital Geral de Areias e no Instituto de Medicina Integral, professor Fernando Figueira e MIP no Recife e também no Hospital Regional do Agreste, que fica em Caruaru. Em todos os casos, o encaminhamento é feito pela saúde municipal.
Porém, quando se fala de pacientes com microcefalia, se discute também a necessidade de pensar o todo. Não basta oferecer o serviço, é preciso ofertar também a humanização. Afinal, o contato olho no olho entre os profissionais e familiares é a forma mais segura para evitar o surgimento de novos transtornos para um paciente que já nasce imerso em tantos desafios.
De acordo com a especialista em pacientes com necessidades especiais, Juliana Andrade, o cuidado começa desde a anamnese. “A consulta nos permite não apenas fazer uma limpeza nos dentes da criança com microcefalia, mas entender todo o contexto, desde a anamnese até como os pais executam a higienização para poder direcionar da melhor forma”.
Para as profissionais que acompanham estas crianças, a profissão vai muito além do atendimento aos pacientes. Com foco na saúde integral das crianças, a tarefa é sinônimo de empatia, amor e, sobretudo, missão!
“Eu costumo dizer que é a minha missão. Para mim, o maior reconhecimento do mundo não é da minha coordenação, não é do colega que acha bonito o que eu faço… eu estou aqui é para os pacientes! Eu ganho tanto todos os dias, eu aprendo tanto com os meus pacientes e com suas famílias que eu acho que eu recebo mais do que eu dou”, afirma a odontopediatra.