Rostos Marcados: A luta por reabilitação, justiça e independência das mulheres vítimas de violência doméstica
Cinco mulheres são espancadas a cada 2 minutos no país e o parceiro é responsável por mais de 80% dos casos reportados, diz Instituto Patrícia Galvão

No Brasil, a violência doméstica é uma realidade brutal que atinge milhões de mulheres. Segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 21 milhões de mulheres foram vítimas de violência doméstica nos últimos 12 meses. A estimativa é que cinco mulheres sejam espancadas a cada 2 minutos no país, sendo o parceiro responsável por mais de 80% dos casos reportados, conforme pesquisa do Instituto Patrícia Galvão.
Ouça na primeira reportagem da série:
A brutal realidade da violência doméstica
Maria Sandra de Menezes, de 55 anos, é apenas uma das muitas vítimas. Ela sofreu violência física, psicológica e patrimonial, sendo alvo de dois agressores: seu ex-companheiro e um primo. Em um desses episódios, foi brutalmente espancada com um pau.
"Tive 32 convulsões e não parava de convulsionar. Internada na UTI por 20 dias e tive duas paradas cardíacas. E quando eu voltei de lá, eu voltei sem memória", relata Sandra. O ataque foi tão severo que ela perdeu nove dentes, teve a mandíbula e o céu da boca quebrados, e suas bochechas ficaram muito machucadas por dentro e por fora. Por seis meses, Sandra precisou se alimentar com canudinho. A vizinha a socorreu no dia seguinte, e ela procurou o SUS para tratamento.
Marcas visíveis e invisíveis: o impacto no rosto
O rosto, por sua representatividade de identidade e emoção, é frequentemente a parte do corpo mais atingida pelos agressores. Luciana Studart, fonoaudióloga e professora da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), explica que o trauma no rosto repercute de diversas maneiras nas funções orofaciais. Marisa de Freitas Sugaya, presidente da Comissão Temática de Políticas Públicas do Conselho Regional de Odontologia de São Paulo (CRO-SP), destaca que atingir a face busca provocar não apenas a violência física, mas também a psíquica e moral, afetando a qualidade de vida e o bem-estar da mulher.
Em Pernambuco, por exemplo, em 2024, 19.509 mulheres foram vítimas de violência, e destas, 9.006 sofreram agressão física, muitas vezes com impacto direto na região da face. Mariana Alves, Coordenadora de Saúde Bucal de Pernambuco, ressalta que esses traumas podem envolver dentes, lacerações, fraturas ósseas e até danos funcionais mais graves, exigindo atendimento odontológico especializado, reconstrução por prótese dentária e cirurgias complexas.
Ilustração para especial rostos marcados - Ilustração Thiago Lucas
O alvo principal: por que a face?
A Dra. Ana Cláudia Gomes, cirurgiã bucomaxilofacial e professora da Universidade de Pernambuco (UPE), enfatiza que a face é frequentemente escolhida como alvo pelos agressores para provocar a estigmatização da vítima, seu isolamento social e repercussões interpessoais e trabalhistas. É uma forma de dizer: "Ela é minha e mostrar vergonha mesmo, eu marco e acabou-se".
Uma pesquisa do programa de perícias forenses da UPE analisou mais de 5.000 laudos do Instituto de Medicina Legal de Pernambuco entre janeiro de 2020 e janeiro de 2024, revelando que 662 apresentaram traumas faciais.
Os dados foram coletados na Delegacia Especializada de Atendimento às Mulheres Vítimas de Violência, que responde por 43% dos casos no estado.
Lei da Reconstrução Dentária: um novo horizonte
Para tentar diminuir os danos causados por essas agressões, a Lei 15116 de 2025 foi sancionada recentemente. Essa medida institui o Programa de Reconstrução Dentária para vítimas de violência doméstica, com o objetivo de garantir serviços odontológicos para reconstruir a face destas mulheres com sequelas das agressões.
Catarina Lago, presidente da comissão de ética do Conselho Regional de Odontologia de Pernambuco (CRO-PE), reforça que a legislação assegurará a recuperação bucal das vítimas por meio de atendimento prioritário em clínicas e hospitais públicos ou conveniados ao SUS.
Recuperação além da estética
A reconstrução dentária vai muito além da questão estética. Marisa de Freitas Sugaya explica que ao possibilitar a reconstrução dos dentes atingidos, a lei também atua contra a repressão da autoestima da mulher e a perda de funções vitais.
"De fato, é um marco muito significativo, até porque essas marcas de violência que a gente vê ficam visíveis também na parte física e muitas vezes as mulheres ficam com lesões faciais, lesões dentárias", aponta Catarina Lago.
O desafio da subnotificação e a falta de dados
Apesar dos avanços legislativos, a subnotificação dos casos ainda é um grande obstáculo para a oferta de um tratamento adequado e efetivo. A Dra. Ana Cláudia Gomes, pesquisadora da UPE, alerta que a ausência de dados como escolaridade, profissão ou cor nos registros oficiais denuncia não apenas a negligência no preenchimento por parte dos profissionais, mas também a fragilidade das ferramentas de investigação.
A violência contra a mulher deixa marcas profundas, não apenas na saúde bucal, mas em diversos aspectos da vida das vítimas.
A face como alvo predileto do agressor
A violência doméstica deixa marcas profundas, não apenas no corpo, mas principalmente na alma das vítimas. Para muitas mulheres, como Maria Sandra de Menezes, de 55 anos, essas marcas são visíveis e constantes. "Não tenho mais o mesmo sorriso que eu tinha. Eu tenho uma cicatriz enorme na boca, nos lábios e essa cicatriz faz com que eu lembre dele 24 horas, porque não tem como olhar num espelho para escovar um dente, escovar meu cabelo e olhar aquelas cicatriz horrível na minha boca", relata Sandra.
No caso de Sandra, as lesões foram ocasionadas por pauladas e inúmeras outras agressões, mas os traumas podem ser causados por socos, armas ou até queimaduras. Independentemente do meio da agressão, uma coisa é certa: a face é sempre o foco.
Ilustração para especial rostos marcados - Ilustração Thiago Lucas
Ouça a segunda reportagem da série:
Uma pesquisa de mestrado de 2021, com orientação da vice-presidente da Sociedade Brasileira de Queimaduras, revelou que em 72% dos casos de violência contra a mulher registrados na região Sudeste entre 2018 e 2019, o rosto foi a área mais atingida pelas queimaduras. A cirurgiã plástica Cristine Dala Nora, do Centro de Queimados do Hospital da Restauração no Recife, atesta a frequência com que o rosto é agredido.
Um dos grandes desafios no atendimento a essas vítimas é a relutância em contar a verdade no primeiro momento. "Muitas delas chegam aqui e não contam a verdade no primeiro momento. Não falam, contam outra história. Tem aí depois no internamento, quando elas já se sentem mais à vontade, quando elas já estão mais acolhidas, aí elas se sentem à vontade para relatar o que de fato aconteceu", explica a cirurgiã plástica Cristine Dala Nora.
Na outra ponta, os agressores também tentam camuflar os fatos. Segundo a delegada Bruna Falcão, gestora do Departamento da Mulher da Polícia Civil de Pernambuco, eles usam argumentos já conhecidos pela polícia: "Muitos negam. Outros dizem que estavam se defendendo delas e outros dizem que perderam a cabeça, que estavam embriagados, faziam uso de droga".
O impacto nas funções vitais e a necessidade de acolhimento
A face, com sua complexa estrutura de ossos, músculos, articulações (como a ATM), dentes, lábios, língua, bochechas e nervos, forma o sistema estomatognático. Na odontologia, esse sistema é responsável por funções vitais como mastigar, falar, engolir e até respirar. Quando há agressão, esse conjunto essencial à sobrevivência pode ser comprometido.
O trauma pode incorrer em fraturas na mandíbula e na face, necessitando da atuação de dentistas, bucomaxilofaciais e, primariamente, médicos. Essas pacientes frequentemente apresentam dificuldade na execução de funções como mastigação, deglutição, fonoarticulação e, eventualmente, nas questões respiratórias, que dificultam a expressão facial e a comunicação, comprometendo-as por muito tempo pós-trauma.
A fonoaudióloga Luciana Studart, coordenadora do grupo de extensão crânio mandibular interno, que oferece atendimento fonológico especializado a vítimas de traumas faciais, percebeu uma mudança no perfil das vítimas durante a pandemia.
"Houve de fato essa inversão, porque acidentes de moto são o maior fator etiológico dos traumas de face. Isso incomparavelmente. Então, durante a pandemia, justamente pela falta de circulação, diminuir os acidentes automobilísticos, diminuíram os acidentes motociclísticos, os agressores estavam mais próximos, provavelmente foi o grande causador desse aumento dos casos de violência doméstica", observa Luciana. Ela reforça a necessidade de um trabalho interdisciplinar no atendimento.
Para atender a essas vítimas, mais do que preparo técnico, é preciso acolhimento. A doutora em saúde coletiva e odontóloga Flávia Machado, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, destaca a importância de os profissionais identificarem sinais de violência, como lacerações e manchas no corpo.
Catarina Lago, presidente da comissão de ética e secretária da Comissão da Mulher do Conselho Regional de Odontologia de Pernambuco (CRO-PE), ressalta a importância de se solidarizar: "É um momento difícil porque às vezes a gente não consegue, não tem muito o que você falar e por muitas vezes ela se sente sozinha, né? Você demonstrar que você tá ali, seja com uma palavra de apoio, seja com um abraço, seja com olhar".
Reconstrução da Esperança
As fraturas podem ultrapassar o trauma dentário e atingir os ossos da face, podendo causar assimetria facial e, inclusive, a necessidade de placas de titânio ou parafusos, em cirurgias mais invasivas e extensas. A complexidade dessas lesões exige um tratamento especializado.
Mesmo diante de tamanha violência, a recuperação é um caminho para a esperança. Catarina Lago, do CRO-PE, observa que, após a reconstrução, as vítimas "já saíram com outra emoção, com outro sentimento, por mais que não apague aquilo que aconteceu com ela, mas ela fica com um pouco de esperança dentro dela que as coisas podem mudar, que vão mudar e que ela merece coisa melhor".
O sorriso como reconstrução: a jornada de retomada da vida
O sorriso é mais do que um simples gesto; ele é o cartão de visita de uma pessoa, um ato de resistência e um direito fundamental. Para mulheres que enfrentaram a violência doméstica na região da face, a capacidade de voltar a sorrir representa um renascimento, uma nova oportunidade de viver plenamente.
Susana Dourado, especialista em saúde coletiva e odontóloga do Instituto Federal da Bahia, ressalta a importância do rosto para a identidade e autoestima do ser humano. "O que que tem na nossa carteira de identidade, né, no Brasil? É o nosso rosto. A parte mais importante, vamos dizer assim, para a identidade do ser humano, da pessoa. É, é um rosto que é o locus privilegiado", afirma.
Ouça a terceira reportagem da série:
Projetos e serviços: o caminho para a reabilitação odontológica
Compreendendo essa relevância, diversos profissionais e instituições já trabalhavam para facilitar a vida dessas mulheres mesmo antes da promulgação da Lei 15.116, que garante a reconstrução dentária gratuita para vítimas de violência doméstica.
Em Pernambuco, a professora doutora de endodontia da Universidade Federal, Elvia Barros, foi pioneira, inspirando-se em um modelo da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em São Paulo. Há quase 10 anos, seu projeto de extensão da UFPE, intitulado "Do Trauma ao Sorriso", no Departamento de Prótese e Cirurgia Bucofacial, dedica-se à restauração de sorrisos.
O projeto "Do Trauma ao Sorriso" atua na prevenção e tratamento de lesões dentárias traumáticas. A equipe multidisciplinar é composta por professores e alunos do curso de odontologia da universidade, contando ainda com o apoio de parceiros externos.
Os atendimentos abrangem todos os procedimentos necessários diante das lesões sofridas, incluindo tratamento endodôntico (canal), restaurações e até a colocação de aparelhos para tracionar dentes que saíram de posição. A coordenadora do projeto, professora Elvia Barros, destaca que o projeto reúne professores de todas as especialidades da odontologia.
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A gente tem séculos de opressão às mulheres, muitas e muitas décadas de naturalização dessa violência, né?delegada Bruna Falcão
Este serviço é destinado a pessoas em situação de vulnerabilidade social e funciona todas as segundas-feiras, das 13h às 17h, no núcleo de apoio e pronto atendimento de odontologia da UFPE, localizado na Cidade Universitária.
A marcação pode ser feita pelo telefone 81 21268830. Além da UFPE, mulheres vítimas de agressão também podem receber suporte odontológico gratuito na Faculdade de Odontologia de Pernambuco e no Hospital Osvaldo Cruz, no bairro de Santo Amaro, no Recife, com atendimento por demanda espontânea.
A Secretaria de Saúde de Pernambuco indica que a cobertura da atenção básica em saúde bucal no estado é de 73% atualmente, com uma rede que inclui 82 centros de especialidades odontológicas, seis UPAs estaduais com serviços odontológicos, sete hospitais com atendimento de urgência em odontologia e cinco unidades com serviços bucomaxilofaciais.
Apesar dos avanços, o caminho para erradicar o problema da violência contra a mulher na raiz ainda é longo.
Ilustração para especial rostos marcados - Ilustração Thiago Lucas
Desafio coletivo: justiça, acolhimento e independência
Para a delegada Bruna Falcão, gestora do Departamento da Mulher da Polícia Civil de Pernambuco, os resultados efetivos só devem surgir a longo prazo, mas é fundamental começar a trabalhar agora para acabar com a cultura de minimização da mulher.
Ela expressa uma visão realista, dada a história de séculos de opressão e naturalização da violência. "A gente tem séculos de opressão às mulheres, muitas e muitas décadas de naturalização dessa violência, né? Até a geração das minhas avós, eu acredito que se, ah, é ruim com ele, pior sem ele. E se é uma mulher solteira, se é uma mulher separada, são menos de duas décadas de existência da Lei Maria da Penha, tentando desconstruir o que há séculos está estabelecido", pondera a delegada, enfatizando a necessidade de um trabalho contínuo para lançar a semente da mudança.
Regina Célia, cofundadora e vice-presidente do Instituto Maria da Penha, aponta que a chave para transformar essa realidade reside na formação continuada de profissionais.
Esses profissionais devem ser mais hábeis no acolhimento da mulher em situação de violência, garantindo que o registro dos fatos seja eficiente para que medidas de apoio institucional seguras possam ser tomadas.
O sentimento de segurança da mulher é crucial, pois um acolhimento inadequado pode levá-la a uma maior vulnerabilidade e até ao feminicídio, já que ela é frequentemente "movida pelo medo".
Conquistar a independência emocional e financeira é o passo inicial para que a mulher reassuma o controle de sua vida. Marisa de Freitas Sugaia, presidente da Comissão Temática de Políticas Públicas do Conselho Regional de Odontologia de São Paulo, destaca a importância vital da reabilitação odontológica para a inserção no mercado de trabalho.
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Essas marcas de violência que a gente vê ficam visíveis também na parte física e muitas vezes as mulheres ficam com lesões faciais, lesões dentáriasCatarina Lago
"Qualquer pessoa que precisa ser integrada a ao trabalho, o SUS tem que ter essa visão de reconstrução da cavidade bucal para a inserção no mercado de trabalho, a independência dessa mulher", afirma Marisa, ressaltando que a independência profissional é crucial para a retomada da vida.
Sandra Menezes, a vítima de violência doméstica cujas experiências foram ouvidas ao longo desta série de reportagens, faz um apelo emocionado por justiça no Brasil.
Ela lamenta a sensação de que as mulheres são tratadas como "pedaços de carne na terra" e que a justiça parece indiferente à violência que sofrem. Sandra clama por união: "É necessário que nós mulheres nos reunimos de verdade em grande multidão e realmente fazemos esses artigos vale a pena para que a lei não seja branda, para que a lei exista.
Essas pessoas ficam impune enquanto nós morremos no dia a dia". Finalizando seu apelo, ela expressa a dor e a necessidade de apoio: "Eu nasci para vencer, mas eu não consigo vencer sozinha. Eu preciso de vocês, mulheres, para lutar, fazer um clamor pra lei da Maria da Penha ser justa, ser verdadeira e ser executada aqui no Brasil".
A luta contra a violência contra a mulher é uma causa coletiva. Ao menor sinal de violência, é fundamental buscar ajuda.
Você pode acionar a ouvidoria estadual da mulher gratuitamente pelo telefone 0800 2818187. Em casos de emergência, ligue para o 190. É importante lembrar que ambas as ligações são gratuitas e o sigilo absoluto é garantido.
A gente tem séculos de opressão às mulheres, muitas e muitas décadas de naturalização dessa violência, né?
delegada Bruna FalcãoEssas marcas de violência que a gente vê ficam visíveis também na parte física e muitas vezes as mulheres ficam com lesões faciais, lesões dentárias
Catarina Lago